domingo, 30 de novembro de 2014

Beneméritos sazonais

Fechas a porta com vagar, não há ruido que te denuncie. Não tens quem te ouça, mas obriga-te a agir assim a força do hábito, bem sei.
Toda a vida foste sombra, esse sorriso imaculado, treinado até à perfeição, lindo. Está em todas as fotografias que tiraste com o teu marido, no céu ele esteja, muitos anos sem nós, deixou-as perfeitas. Aprendeste a amá-lo, eras nova por demais quando casaram, oh doce viúva. Tinhas a frescura de uma flor acabada de florir, o mundo chamava por ti, e entregaste-te de alma àquele homem. Sabias que ias ter filhos brevemente, era o passo seguinte, há que construir família, perpetuar a espécie. Estavas curiosa, tinham-te explicado que era uma dádiva, prometeram-te amor incondicional, transcendente.
E toda a tua vida a casa esteve cheia, e rodava sobre ti. Estavas responsável pela tua família, eras a dona da casa, a mãe devota, a mulher cobiçada, a cozinheira premiada. Não eras feliz. Mas também não eras triste, estavas satisfeita, tanta gente dependia de ti, proporcionavas bem estar a todos os que estavam debaixo do teu tecto. Um dia ias ser avó! Esse dia chegou! E quanta emoção sentiste, mais gerações, haja espaço no mundo para todos! E bem se sabe, onde cabe um, cabem dois ou três, tudo se arranja, ah! Viva a criançada, vivam as famílias!
Acende a luz. Olha de relance para as fotografias espalhadas pelos móveis, tens muitas no caminho para o armário onde guardas as mantas. Todas primam pela imagem encenada, o corpo forçosamente descontraído, a face iluminada com alegria momentânea. Ah! Pega na manta, e vai para o cadeirão, senão perdes o teu programa da tarde, deixa-te de memórias, não te dão nada. Ninguém te dá nada, estão todos demasiado ocupados, há compromissos a cada hora, a cada dia. Hoje se calhar não jantas, a solidão alimentou-te, faz falta uma companhia para abrir o apetite, uma conversa para espevitar os sentidos. Dormente como tens estado, é natural que pouco te importe. Mas nota que é fim de Novembro, a boa vontade está quase a bater-te à porta. Todos os anos, só por esta altura, mas ainda assim, com uma consistência anual, não sejamos pobres e mal agradecidos, batem à tua porta os putos com boas intenções. Dão-te um cabaz, porque é Natal, conversam contigo, porque é Natal, interessam-se por ti, porque estás só e é Natal. Dão-te atenção, e é bom que te sintas acompanhada até ao ano que vem, que é quando eles voltam. Os tempos mudaram, a solidariedade tem época marcada.
As lágrimas que derramaste secaram-te, flor. És bela, mas murchas a cada dia, ninguém toma conta de ti, ninguém ouve a tua história. Já não te lamentas com veemência, soltas o teu suspiro em tom de aceitação.
Isto é uma vida.


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