Fechas a porta com vagar, não há ruido que te denuncie. Não
tens quem te ouça, mas obriga-te a agir assim a força do hábito, bem sei.
Toda a vida foste sombra, esse sorriso imaculado, treinado
até à perfeição, lindo. Está em todas as fotografias que tiraste com o teu
marido, no céu ele esteja, muitos anos sem nós, deixou-as perfeitas. Aprendeste
a amá-lo, eras nova por demais quando casaram, oh doce viúva. Tinhas a frescura
de uma flor acabada de florir, o mundo chamava por ti, e entregaste-te de alma
àquele homem. Sabias que ias ter filhos brevemente, era o passo seguinte, há
que construir família, perpetuar a espécie. Estavas curiosa, tinham-te
explicado que era uma dádiva, prometeram-te amor incondicional, transcendente.
E toda a tua vida a casa esteve cheia, e rodava sobre ti. Estavas
responsável pela tua família, eras a dona da casa, a mãe devota, a mulher cobiçada,
a cozinheira premiada. Não eras feliz. Mas também não eras triste, estavas
satisfeita, tanta gente dependia de ti, proporcionavas bem estar a todos os que
estavam debaixo do teu tecto. Um dia ias ser avó! Esse dia chegou! E quanta emoção
sentiste, mais gerações, haja espaço no mundo para todos! E bem se sabe, onde
cabe um, cabem dois ou três, tudo se arranja, ah! Viva a criançada, vivam as
famílias!
Acende a luz. Olha de relance para as fotografias espalhadas
pelos móveis, tens muitas no caminho para o armário onde guardas as mantas. Todas
primam pela imagem encenada, o corpo forçosamente descontraído, a face iluminada
com alegria momentânea. Ah! Pega na manta, e vai para o cadeirão, senão perdes
o teu programa da tarde, deixa-te de memórias, não te dão nada. Ninguém te dá
nada, estão todos demasiado ocupados, há compromissos a cada hora, a cada dia. Hoje
se calhar não jantas, a solidão alimentou-te, faz falta uma companhia para abrir
o apetite, uma conversa para espevitar os sentidos. Dormente como tens estado,
é natural que pouco te importe. Mas nota que é fim de Novembro, a boa vontade
está quase a bater-te à porta. Todos os anos, só por esta altura, mas ainda
assim, com uma consistência anual, não sejamos pobres e mal agradecidos, batem
à tua porta os putos com boas intenções. Dão-te um cabaz, porque é Natal,
conversam contigo, porque é Natal, interessam-se por ti, porque estás só e é
Natal. Dão-te atenção, e é bom que te sintas acompanhada até ao ano que vem,
que é quando eles voltam. Os tempos mudaram, a solidariedade tem época marcada.
As lágrimas que derramaste secaram-te, flor. És bela, mas
murchas a cada dia, ninguém toma conta de ti, ninguém ouve a tua história. Já
não te lamentas com veemência, soltas o teu suspiro em tom de aceitação.
Isto é uma vida.
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